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"CIGANO NÃO ANDA SÓ"

Um retrato da luta cigana contra a invisibilidade verificada na história brasileira e acentuada durante a pandemia da Covid-19

"Sou Batista Uchoa dos Santos. Eu sou da comunidade Ciganos Calon, da cidade de Crateús, aqui no estado do Ceará". É assim que Cigano Batista, como é conhecido, se apresentou quando a reportagem o contactou. Batista, de 58 anos de idade, é nascido e criado em Crateús, município cearense, e assim como todos no Brasil, sentiu os impactos da pandemia da Covid-19 na pele.

Crateús, município localizado no interior do Ceará e desenvolvido às margens do Rio Poti, possui uma população cigana estimada em 20 famílias, de acordo com Batista, líder da comunidade crateuense. Além da população cigana presente no município, há registros consideráveis de outras comunidades ao longo do território cearense. De acordo com dados coletados pelo Instituto Cigano Brasil (ICB), eles somam mais de 20 mil espalhados em cerca de 32% dos municípios do estado do Ceará. 

No dia 02 de junho de 2020, o Ceará registrou, no município de Sobral, o primeiro óbito em uma comunidade cigana em decorrência da pandemia do novo coronavírus. A vítima foi Antônio Ferreira dos Santos, mais conhecido como "cigano Barroso", de 63 anos. Antônio faleceu de insuficiência respiratória após contrair o vírus e, por ser diagnosticado com diabetes, integrava o grupo de risco da doença. Na tarde do dia 10 de março de 2021 faleceu em decorrência da Covid-19, Antônio Gleison Oliveira dos Santos, de 40 anos, filho de cigano Barroso. Atualmente, o coronavírus fez vítimas espalhadas em quase todas as comunidades ciganas do Brasil.

 

Na tarde do dia 11 de junho de 2020 os povos ciganos adicionaram outro nome à sua lista de vítimas da Covid-19: Solimar, de 60 anos. O cigano foi o segundo membro, dentre todas comunidades do estado, a falecer em decorrência do novo coronavírus. Solimar ficou internado durante trinta e um dias no hospital São Camilo, em Crateús, mas faleceu deixando esposa, um filho e muitos amigos. Dentre os familiares, está o cunhado Batista, que descreve o início da pandemia, o quadro de Solimar ao contrair a doença e o falecimento do parente como uma situação de “pânico”: 

Há um ano, no início dessa pandemia, a gente teve aquele susto, aquele pânico, mas não sabia a gravidade da real situação. Um cunhado meu, de nome Solimar, apresentou sintomas de dores de barriga, febre e custou a procurar ajuda. Naquele momento, no início, todo mundo [estava] em pânico. Então, quando foi um determinado dia, ele foi para o hospital. Passou uma semana, quando foi um dia recebi uma ligação do ‘doutor’. Ele ligou pra mim, e disse: é o Batista? Eu digo: é o Batista. Ele [o médico] disse: Solimar é um paciente em estado grave e a gente vai entubar. 


Pra lhe falar a verdade, eu não sabia nem o que era intubação. (... ) Aí ele [o médico] disse: inclusive, seu cunhado tá aqui, pediu pra eu ligar e quer falar com você. Aí falei com ele: 'e aí, como é que tá a situação?'. 'Não, tá bem. Eu tive uma falta de ar, assim, meio tonto, mas tô bem'. 


Aí quer dizer, entubaram ele, falando bom, normal, do jeito que eu tô conversando. Passaram trinta e dois dias nessa intubação, onde veio a óbito [Solimar]. De lá pra cá, contraiu [o vírus] a mulher dele [Luciene Uchoa dos Santos], com alguns sintomas pulmonares, fez vários exames, ficou alguns dias internada e saiu. [A pessoa] Fica com algumas sequelas, dor nas costas, dor nos rins. Dá uma sequela, fica aquela ‘refriedade’ por dentro como quem tá com febre dentro, com frio dentro. Sei lá, uma sensação estranha".


Aí com outros quatro, cinco dias, outra irmã minha, de nome Mariazinha Uchoa dos Santos, também foi pro hospital. Passou uns dias lá junto com a outra, depois um filho do finado, de nome Luciano, contaminado também. Mas, esses três, Mariazinha, Luciene e o Luciano, saíram. Aí, quando vê agora, no início adoeceu várias pessoas da família Cigano Calon, foram pro hospital. Eu sei que tá difícil a situação, agora agravou muito mais, mas sempre nós encontramos um preconceito”.

ALTA CAPACIDADE VIRAL NAS COMUNIDADES

A partir do depoimento de Batista, fica evidente que dissertar sobre o povo cigano é também percorrer uma miscelânea que envolve fé, linguagem e políticas públicas, além de estética, quiromancia e dança. As políticas públicas relacionadas às comunidades ciganas são, em geral, segregacionistas ou, inclusive, inexistentes. Em períodos de crise, como a desencadeada pelo novo coronavírus, a emergência de políticas públicas assertivas faz-se clara. “É o que eu sempre falo: cigano não anda só e governo não anda só, tem que conversar e andar junto, através de aliança formada de ética e transparência”, declara Rogério Ribeiro, presidente do ICB e, assim como Batista, cigano da etnia Calon.


A maioria das comunidades existentes no estado do Ceará são povoadas por ciganos da etnia Calon. Segundo o mestre em história Rodrigo Corrêa Teixeira, esse grupo se diferenciou culturalmente de outras etnias ciganas após um prolongado contato com povos ibéricos e europeus. Dentre tais diferenças está o sedentarismo, ou seja, a fixação em determinada região. Apesar do estereótipo de nômades, os ciganos no Ceará se estabeleceram na terra e estão distribuídos pelo estado. 


Mesmo com suas singularidades, a população cigana em geral possui um modo de organização familiar e vivência em comunidades numerosas. Tal convívio de proximidade entre as pessoas se sobressai, em termos de isolamento social, como obstáculo no enfrentamento à crise sanitária atual. Dados coletados através de iniciativas privadas, como o ICB, mapeiam as mortes por Covid-19 em território brasileiro.

Em nota, o Instituto lamenta as mortes e pede a atenção das autoridades governamentais. “Os impactos da pandemia da Covid-19 no Brasil vêm afetando os povos Ciganos, reforçando as imensas desigualdades do país. Para a população Cigana, as medidas são difíceis de serem cumpridas sem o complemento de outras como acesso à água, alimentação e outros recursos essenciais para o autocuidado. O poder público e órgãos responsáveis pelo enfrentamento da doença demonstram incapacidade estratégica e desorientação para lidar com uma das maiores crises sanitárias do País”, escreve Rogério Ribeiro.


Batista também expressa a sua indignação relacionada à falta de suporte por parte dos governos Federal, Estadual e Municipal durante a pandemia: "Nós precisávamos de alguém do poder, do Governador do Estado, seus assessores, as pessoas que trabalham direto com ele, [para] olhar por nós. O poder público, o poder municipal aqui da nossa região, também vira as costas pra nós, entendeu? Nós não temos ajuda de ninguém, nunca recebemos uma gota de álcool, nunca recebemos." De acordo com o cigano, ele e sua comunidade nunca receberam ao menos uma máscara para se protegerem do coronavírus.  


Mais de um ano após o início da pandemia, as comunidades ciganas continuam sem amparo do governo. 

“A VÍRGULA NÃO TEM CIGANO”

“Há falta de políticas públicas específicas. Observamos que tem muitas políticas públicas em situação de vulnerabilidade e quando é de interesse deles [governo], deixam a gente em [categoria de] comunidade de povos tradicionais. Colocam indígenas, quilombolas, daí ‘vírgula’ povos de comunidades tradicionais. Nós estamos lutando muito para essa ‘vírgula’ ter cigano, pescadores e outros”, esclarece o presidente do ICB.


Nesse sentido, o protagonismo de instituições privadas na luta cigana se torna necessário. Essas entidades, como o Mesa Brasil, do Serviço Social do Comércio (Sesc), ajudam no mapeamento, coleta de informações, distribuição de alimentos e demais auxílios que contribuem para a preservação da cultura cigana e manutenção de direitos básicos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

Para sanar a fome de muitos, em abril de 2020, o Mesa Brasil, em parceria com o ICB, doou 150 litros de leite que foram distribuídos entre as famílias residentes da Comunidade Sumaré e da Fazenda Joelma, no município de Sobral. As doações acontecem mensalmente, porém, não possuem montante suficiente para abastecer todas as comunidades igualmente.

Quando o assunto são os mapeamentos de ciganos pelo território nacional, a situação encontra-se defasada e os números atualizados são dispostos por instituições privadas como o ICB. De acordo com dados obtidos em 2009 através da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram mapeados 290 acampamentos ciganos em municípios distribuídos em 21 estados. A MUNIC de 2011 focou na questão dos municípios destinarem área pública para acampamento do grupo étnico. 


Além das MUNICs de 2009 e 2011, há dados levantados pelo Cadastro Único (CadÚnico) que, desde 2011, tem objetivo de recolher informações de todas as famílias que integram povos ou comunidades tradicionais. Para o Cadastro, cerca de 26 mil ciganos no Brasil são reconhecidos como tais. Número esse considerado irrisório se comparado aos 3 milhões de ciganos espalhados pelo Brasil e mapeados pelo ICB. Acerca dos dados obtidos pelo Cadastro, Rogério Ribeiro afirma: “Acreditamos que são muitos mais porque eles não se identificam”. 


No dia 31 de dezembro de 2018 a Portaria Nº 4.384/2018 foi publicada no Diário Oficial da União. Nela, há consolidação da intitulada “Política Nacional de Atenção Integral à Saúde Do Povo Cigano/Romani”, cujos objetivos aferidos nos incisos do Artigo 4º, por exemplo, visam ampliar o acesso do Povo Cigano/Romani aos serviços de saúde do SUS, identificar, combater e prevenir situações de violência contra o Povo Cigano/Romani e contribuir com o enfrentamento das discriminações de gênero, étnica, território, com destaque para as interseções com a saúde da etnia. 

Acerca da execução de políticas públicas determinadas pela Portaria, Rogério Ribeiro alerta. “A gente tem uma Portaria [Nº 4.384/2018] que trata dos povos ciganos mas que infelizmente não é implementada como muitas coisas não são. Não são efetivadas por birra e falta de compromisso de certos gestores”, declara o presidente do Instituto. 


Em 2020, a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Snpir), pertencente ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) informou que está elaborando um diagnóstico nacional da situação das comunidades tradicionais, para levantar dificuldades e demandas originadas pela pandemia da Covid-19.

 

Além do diagnóstico, também foi prometido auxílio em cestas básicas, álcool, máscaras e outras medidas para prevenir o contágio viral. “Não fizeram nada. Vacinas nada. Cestas básicas nada. Não existem políticas públicas específicas para os Povos Ciganos”, afirma Rogério Ribeiro. Até o fechamento da matéria a Snpir não se posicionou acerca do progresso.


A dificuldade de identificar os Ciganos não está apenas no mapeamento, ainda que os números revelem tal. Para o reconhecer, é necessário reatar laços passados, assumir as origens e estar representado aos olhos do governo, características essas que remontam o imagético do que é ‘ser cigano’ para aqueles que observam de longe.

 

Rogério Ribeiro salienta ainda que, o fator de não-identidade possui razões de sobrevivência. “Muitas pessoas procuram o Instituto para tentar descobrir suas origens. Muitos quando são mais jovens, como é meu caso, possuíram rompimento na familia e negaram as origens por conta da discriminação e preconceito. É uma questão de sobrevivência”, relembra Rogério. 

 

Apesar de constarem no Decreto 6.040 de 7 de fevereiro de 2007 como etnia e parte dos 29 povos de comunidades tradicionais, é rara a denominação de “cigano” em levantamentos públicos. Rogério Ribeiro ainda cita que, nesse sentido, muitos ciganos acabam por se denominar, equivocadamente, como “índio” ou “pardo”.

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